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6 décembre 2023Durante o mês de outubro, a realizadora Cláudia Varejão encontrava-se em Paris para preparar a sua próxima longa-metragem, com o Instituto de Camões e Fundação Calouste Gulbenkian. Veio visitar a sede da Cap Magellan, foi convidada no programa Tempestade 2.1 e ofereceu-nos uma entrevista exclusiva.
Cap Magellan: Estás aqui em França para fazer entrevistas e pesquisas para o teu próximo filme. Estás particularmente à procura de jovens lusodescendentes. Porque é que queres entrevistar essas pessoas?
Cláudia Varejão: Há duas coisas muito importantes para mim neste percurso, neste caminho que estou a percorrer. Um é, interessa-me muito como é que nós conseguimos distinguir a nossa identidade individual e aquilo que herdamos. É um caminho difícil de se fazer. Nós sabemos “Ah este é o meu pai, e esta é a minha mãe e eu? Quem é que sou?”. Portanto interessa-me muito perceber como é que as outras pessoas lidam com esta questão da herança.
Outra coisa que me interessa muito no cinema em geral é a singularidade de cada pessoa. Cada pessoa é absolutamente única e cada encontro para mim é: “esta pessoa, que particular”. Acho que vivemos num contexto social em que nos submetemos todos muito, tentamos ser sempre preciso uns aos outros, somos educados nesse sentido, temos depressões por causa disto porque nós não sentimos iguais. No dia-a-dia, vamos para a escola e a turma está organizada para sermos todos iguais, para não termos dúvidas, para pensarmos todos da mesma forma. É muito difícil neste módulo conseguir imergir a nossa identidade única.
Nós temos um mapa interior que é absolutamente único e singular. Não há ninguém que seja igual a nós. É muito difícil que isso venha para cima sem vergonha. É muito difícil descordar da sociedade. Portanto a singularidade de cada pessoa também me interessa muito. No contexto em que gerações têm imigrado, têm passado os valores uns aos outros, essa passagem de valor muitas vezes faz com que nos questionemos: “Então e eu? Quem é que sou nesta herança?”. Isso interessa-me muito. Também, naturalmente, me interessa como é que continuamos a errar na história, no sentido em que continuamos ainda a emigrar, fugir de guerras, a fugir da pobreza, a fugir da fome. Muitas pessoas continuam a ter dificuldades a integrar, continuamos a ver imigrantes a morrer no mar… Os portugueses vieram de terra, mas passaram também fome e muitas dificuldades. Portanto, estes ciclos de erros históricos também me interessam muito; este lado mais político da imigração, também me interessa muito.
Cap Magellan: Mas, como é que consegues escolher pessoas com quem falar e assuntos?
Cláudia Varejão: Acho que isso vai fluindo de uma forma espontânea. Num caso tipo de começar a entrevistar alguém, as conversas vão, as pessoas é que ditam o caminho. O mundo interior, esse tal mapa singular de cada pessoa, é que me diz: “esta pessoa arrisca-se a ser quem é, vou buscá-la”. Aqueles que arriscam ser quem são, são as pessoas que à partida me interessam na vida.
Cap Magellan: Quais são os assuntos que queres tratar nos teus filmes, em geral?
Cláudia Varejão: Cada filme é um filme. São todos diferentes. Neste filme interessa-me as questões da identidade sexual, o quê que é ser queer num contexto de imigração, que já é muitas vezes um contexto que já define os sítios onde tu te podes mover: és imigrante, vais ter que passar por este processo mesmo que tu estejas a emigrar agora. Se ainda por cima és trans, vai ser ainda mais complicado. Portanto, há muitas questões: a questão da imigração, a questão de identidade sexual, de género, etc. Todos esses assuntos que são muitos muitos complexos e interessam-me.
Cap Magellan: Porquê Paris?
Cláudia Varejão: Não sei bem dizer, mas talvez porque nos últimos filmes tenho vindo sempre trabalhar a Paris, porque tenho trabalhado com o dinheiro de portugueses e franceses. As co-produções acabaram por estar sempre aqui em Paris, porque é uma das cidades que tem uma das maiores comunidades de imigração. Também porque é uma espécie de laboratório humano, com muitas culturas a viver no mesmo espaço geográfico, uma cidade extremamente complexa. É impossível dizer aos franceses de Paris que são racistas, que são simpáticos. É impossível dizer um estereótipo da cidade e, isso, interessa-me. Não se pode agarrar: Paris não se consegue agarrar. É uma cidade sem fim com muita diversidade. A diversidade num só lugar: isto é a vida humana.
Cap Magellan: Consideras-te queer?
Cláudia Varejão: Eu sou. Acho que não me sinto parte da normatividade, da forma, por exemplo, como me educaram para a minha identidade de género. Vejo agora que era educada como rapariga mas fazia coisas de raparigas e de rapazes. Ao mesmo tempo, não me sentia nem rapaz nem rapariga. Portanto acho que senti-me muito fora do centro normativo. Também enquanto adolescente, namorei com rapazes, namorei com raparigas depois, hoje, vivo com uma rapariga. Sinto que ser queer é não encaixar em nenhuma caixinha bem desenhada.
Cap Magellan: Parece que queres dizer que alguém que é heterossexual também pode ser queer?
Cláudia Varejão: Eu acho que sim. Acho que ser queer é ser oblíquo, não se encaixar na normatividade da cultura e da educação que nos foi transmitida.
Cap Magellan: Então, não tem forçosamente que haver com a sexualidade?
Cláudia Varejão: No meu entender é isso. Provavelmente quando estiver muito velhinha, algumas sociedades já vão preparar as pessoas para serem humanas, ponto. Nessa humanidade, vamos ser diversos e a palavra queer pode cair nessa altura, porque já está conquistada e celebrada. Ninguém tem nada a ver com o que tenho no meio das minhas pernas. Ainda pensamos muito sobre a genitália. Definimos uma pessoa pelo o que ela eventualmente tem na sua zona genital e não pelo o que ela é. Isso vai ser incrível quando os homens usarem coisas de mulheres sem ser uma questão! Acho que Paris é uma cidade bastante queer nas suas múltiplas expressões de género. Isso é muito inspirador. Lisboa já está a começar também. Acho que as grandes capitais trazem essa diversidade queer, arriscam. Love the risk. Temos de arriscar. Os imigrantes arriscaram e continuam a arriscar. As pessoas que emigram, em vida, agora, no momento presente, arriscam. Acho que o meu filme é sobre o elogio do risco.
Cap Magellan: Como é que vives o facto de ser queer publicamente, enquanto artista e enquanto figura pública em Portugal?
Cláudia Varejão: Não penso muito nisso. Enquanto cineasta, sinto-me uma pessoa privilegiada socialmente, sinto que tenho o privilégio de falar e, se falo, tenho que pensar no que estou a falar. Tenho uma responsabilidade no impacto que poderá ter, sobretudo nas pessoas mais jovens. Nesse sentido, acho que sinto, enquanto pessoa queer, uma responsabilidade positiva, no poder ter um papel positivo na minha passagem na vida, no poder trazer alguma coisa positiva, progressista e a favor da liberdade humana, da diversidade humana.
Cap Magellan: Na tua arte, nos teus filmes, queres também mostrar aos jovens queer e que têm dificuldades em mostrar a sua personalidade, como é que é possível viver e como é que devem ser o que são?
Cláudia Varejão: Acredito que o gesto artístico não é um gesto com uma meta racional: um pintor não pensa no que vai dar aos outros, é um impulso de risco espontâneo de experimentar, de fazer, de ir caminhando. Portanto, não se está a pensar no que os jovens da Arménia vão achar deste filme, no que as pessoas do Porto vão achar do filme. Nunca penso em ninguém enquanto estou a fazer um filme. Em todo o caso, quando partilho um filme com o público, é aí que percebo o impacto que aquilo que faço pode ter nas pessoas, positivo ou negativo. Agora se alguém vier dizer “obrigado, o seu filme ajudou-me a ter menos vergonha de amanhã ir para a escola vestido de saia enquanto o meu pai sempre disse que eu tenho de usar calças”, fico muito contente. Se o filme ajudou, é fantástico porque eu também quando era adolescente, procurava filmes, música que me ajudasse a me sentir-me menos sozinha. A Arte tem o lugar de acompanhar e de nos dizer “está tudo bem” e isso é fabuloso. Agora eu enquanto realizadora só penso se sou capaz daquilo que imaginei, que queria fazer. E isso já é muito difícil.
Cap Magellan: Ficas quanto tempo em Paris e de quem é que estás a procurar agora?
Cláudia Varejão: Agora estou sobretudo à procura de jovens, para cima dos 20 anos para cima e que querem falar. É importante aqui que tenham esta matriz de serem de nacionalidade portuguesa ou que nasceram cá ou que emigraram para cá entretanto. O fator português na sua identidade de alguma forma está presente e isso interessa-me.
Cap Magellan: Têm mesmo que ter a nacionalidade?
Cláudia Varejão: Não podem não ter, podem ser só filhos de pais portugueses ou de um elemento parental português e não ter a nacionalidade. Pode se dar o caso de não terem, de os pais não terem dado a nacionalidade portuguesa aos filhos mas de viveram a portugalidade de alguma forma, que tenham herdado da cultura portuguesa isso seria importante.
Cap Magellan: Tem que falar português também?
Cláudia Varejão: Não. Todas as pessoas são bem-vindas desde que tenham de facto a nacionalidade portuguesa ou uma relação muito próxima com Portugal de alguma forma,. Somos todos diversos e a forma de viver essa identidade é muito distinta. Cada história é uma história.
Cap Magellan: A minha última pergunta é a pergunta que faço sempre no final de todas as minhas entrevistas: tens uma mensagem para os jovens lusodescendentes?
Cláudia Varejão: Não tenho uma mensagem. A única coisa que diria é que é muito importante correr riscos. Foi em correr riscos que me encontrei sempre. Riscos não quer dizer perigo: é claro que podemos pensar “mas eu vou escolher uma profissão que sempre ouvi dizer que não se ganha bem”, é um risco mas não um perigo. Há muitas coisas que fazemos na vida em que não há nada que prove que é arriscado, mas que achemos ser arriscado. As coisas mais básicas do mundo como: eu não vou sair à rua com pelos por baixo dos braços porque vão reparar e vão dizer que é feio. Isto é não correr riscos. Não correr riscos quer dizer a coisa mais grave da vida que é: não nos encontrar com nós próprios. Isto é desperdiçar este privilégio que é de viver.
Cap Magellan: A conclusão é então de correr riscos.
Cláudia Varejão: Com juízo mas sim, de correr riscos.
Cap Magellan: Muito obrigada Claudia! Ficamos à espera do novo filme!
Pode contatar a cineasta pelo email claudiavarejaopesquisa@gmail.com ou nas suas redes sociais: Instagram, Facebook.
Entrevista realizada pela Julie Carvalho,
Transcrição pela Sophie Abre