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1 janvier 2019A mitologia grega é um testemunho da representação do mundo antigo através de um vasto conjunto de textos e de representações. Neste âmbito, e com a noção sempre presente de que a História se move continuamente para lá dos limiares dos tempos, decidimos abordar este mês uma lenda que permanece muito atual: a revolta de Prometeu.
A personagem de Prometeu é uma das mais complexas, mas também uma das mais narradas da mitologia clássica. É descendente dos Titãs, as divindades primordiais da mitologia grega, que viriam a gerar os deuses do Olimpo. Filho de Jápeto e Témis, é irmão de outros titãs: Atlas, Epimeteu e Minoécio. Ao longo dos tempos, vários autores retrataram ou inspiraram-se em Prometeu: Hesíodo na sua Teogonia, Ésquilo no seu Prometeu Agrilhoado, o renascentista Boccaccio, Goethe e Shelley no século XIX ou, ainda, Albert Camus, mais próximo de nós, no seu Prometeu nos Infernos. É, sem dúvida, um mito transversal à cultura ocidental.
Na Cidade-Estado de Sicião, na península do Peloponeso, uma querela instala-se aquando do sacrifício de um imponente touro. Entre nacos de carne suculenta, vísceras, gordura reluzente e ossos, o dilema instala-se: o que caberia aos deuses e o que caberia aos homens? O sensato Prometeu é chamado para resolver a disputa já que, perante a sua conhecida sabedoria, todos aceitariam a sua partilha. Prometeu assume a defesa dos mais fracos perante o poder esmagador dos deuses. Esquarteja e desmembra o touro imolado e da sua pele faz duas bolsas: na primeira, coloca os melhores pedaços cobrindo-os com as vísceras do animal; na segunda, os ossos, escondidos por baixo de uma apetitosa camada de gordura. As aparências são por vezes enganadoras e Zeus, deus dos deuses, de um ar sobranceiro e convicto de realizar a melhor escolha, opta pela segunda bolsa. Furioso, ao descobrir o embuste, Zeus decide castigar os homens. Doravante, os homens, a quem coube o melhor alimento, tornar-se-ão mortais. A ira de Zeus é terrível e, em retaliação, priva os homens do fogo. O fogo que Prometeu dera aos homens, que os aquecia, os alumiava, que lhes permitiu desenvolver as artes e as técnicas. O castigo é pavoroso mas Prometeu, filantropo e benfeitor da Humanidade, intervém novamente em prol dos homens. Rouba o fogo aos deuses na forja de Hefesto para novamente entregá-lo aos homens. Perante nova afronta, a cólera de Zeus torna-se então incomensurável. Desta vez, Prometeu não escapará à fúria divina. Zeus encarrega o deus do fogo, Hefesto, e os titãs Bia e Cratos de capturarem Prometeu e agrilhoá-lo a um rochedo no Monte Cáucaso. Aí, uma águia monstruosa vem devorar o fígado do cativo, o qual se regenera ininterruptamente fazendo da sua punição um suplício sem fim.
Eis que surge a revolta… Prometeu torna-se a voz da contestação à omnipotência dos deuses, perante a iniquidade da cruel condenação que tem de enfrentar: «Eis aqui, coberto de correntes, um deus desgraçado, incurso na cólera de Zeus […] tudo isso porque amei os mortais…» (Ésquilo, Prometeu Agrilhoado). Mas a punição de Prometeu é, na verdade, a imagem dos tormentos que Zeus infunde nos homens, seres mortais afligidos pela doença, pela velhice e pela morte, atarantados com o árduo trabalho dos dias para sobreviver. O sofrimento de Prometeu é o sofrimento dos homens. Prisioneiro, está revoltado contra a vontade divina: «Ninguém é livre senão Zeus […] Sua vontade só, é para ele a justiça» (Ésquilo, ob. cit.). Prometeu recusa a Zeus a legitimidade do castigo: aquele que lhe fora aplicado e aquele que inflige aos homens.
A revolta é, sem dúvida, um dos apanágios da condição humana. A História da Humanidade é profícua em momentos em que o Homem não vergou perante a injustiça, não consentiu a uma autoridade que ela amordaçasse a sua liberdade, não se resignou perante o domínio castrador que agrilhoava o génio humano. Nestas últimas semanas, a França foi alvo de uma onda avassaladora de contestação à governação do país. Esta revolta é também a da voz dos acorrentados, daqueles que vivem modestamente, dificilmente até, a voz dos que se sentem olvidados por um poder cada vez mais distante das suas preocupações e da resolução dos seus problemas. Revoltam-se contra quem elegeram para dirigir, contra um governo, contra um presidente que muitos apelidam de “jupiteriano” (Júpiter, deus romano, equivalente de Zeus para os Gregos).
Zeus acabaria por libertar Prometeu porque precisava da sua presciência, da sua capacidade em prever o que adviria. Hoje, o povo está na rua e estará muito provavelmente a avisar os que governam em nome da Nação sobre o que poderá advir. Cabe a Júpiter, perdão… a Zeus, entender o aviso.
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional de Saint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org