Entrevista de João Cardoso
24 avril 2019Heranças : Obrigações e consequências
2 mai 2019Várias foram as mitologias que retrataram o Dilúvio, como nas tradições indu, chinesa, inca, hebraica ou, ainda, mesopotâmica. Em diferentes pontos do globo, a ira dos deuses materializou-se na súbita e devastadora enchente das águas. A água que mata a sede dos humanos e dos animais, prenúncio de vida nos verdejantes campos férteis, torna-se torrente destruidora. A narração transcrita na Bíblia é, sem dúvida, a mais célebre. Noé salva todas as espécies animais do extermínio na arca que Deus lhe pedira para conceber. Salvando os seus, também, salva toda a Humanidade. Mas debrucemo-nos sobre o relato mesopotâmico que lhe é anterior em vários séculos e que, certamente, o inspirou, da Epopeia de Atrahasis.
O Homem fora concebido pelos deuses a fim de trabalhar para eles e provê-los em mantimentos através de sacrifícios. Fruto de um duro labor, executa na perfeição a tarefa de contentar estes deuses ociosos, muito irritáveis no entanto. Mas na verdade, toda a azáfama humana incomoda o sossego divino. O alarido provocado pelo trabalho dos Homens, que se reproduzem a uma velocidade vertiginosa, importuna-os. Para resolver a questão, Enlil, deus supremo, senhor dos céus, envia-lhes terríveis castigos sob forma de epidemias, de secas e de fomes. Contudo, Enki, deus da sabedoria, senhor das águas subterrâneas e protetor dos humanos, desfazia-lhe constantemente os planos. A cada nova investida de Enlil contra os Homens, Enki avisava com antecedência Atrahasis, um sábio da sua confiança. Enlil, enfurecido, decide acabar uma vez por todas com a Humanidade: as águas far-se-ão dilúvio, resvalando das montanhas, transbordando dos rios e caindo dos céus. Mas, mais uma vez, Enki alerta Atrahasis. Em sonhos, ordena-lhe que construa uma barca sólida onde pudessem caber todas as espécies vivas da Terra. Durante seis dias e sete noites, a fúria das águas espalha-se por toda a superfície do globo. Ao sabor das ondas colossais e da pavorosa força dos ventos, a nau atravessa tempestades aterradoras até encalhar, finalmente, no sétimo dia, nas margens inundadas do Monte Nishir: «O mar acalmou, o clamor do dilúvio calou-se. Olhei para o céu. Um grande silêncio reinava sobre o mundo […] As águas lisas formavam um teto sobre a terra invisível» (in Epopeia de Gilgamesh). Mas a Humanidade fora salva, e todas as formas de vida puderam, depois das águas se retirarem, florescer outra vez. A cólera dos deuses fora apaziguada…
Nos dias de hoje, a ira dos deuses é testemunhada na forma como a Natureza responde às agressões que o Homem lhe inflige. Desde os inícios da Revolução Industrial, no primeiro quartel do século XIX, a Humanidade, na sua desenfreada correria pelo desenvolvimento económico, tem fustigado a Terra-Mãe. As alterações climáticas são notórias. Os níveis de poluição da atmosfera, das águas, da terra atingiram níveis assustadores, quiçá irreversíveis. As espécies animais e vegetais têm desaparecido face à ânsia delirante do Homem pelo lucro que despreza tudo e todos. O fim insinua-se, trágico e irrevogável. Em 2013, o escritor angolano José Eduardo Agualusa publica um romance distópico, A Vida no Céu, onde imagina a vida humana depois de um novo e, desta vez, definitivo dilúvio: «Depois que o mundo acabou fomos para o céu. O grande desastre – o Dilúvio – aconteceu há mais de trinta anos. O mar cresceu e engoliu a terra. A temperatura à superfície tornou-se intolerável. Em poucos meses fabricaram-se centenas de enormes dirigíveis. Entre os maiores estão o Xangai, com cinquenta mil habitantes, e o Nova Iorque, o São Paulo e o Tóquio, cada qual com vinte mil. As famílias mais pobres, sem meios para comprar apartamentos nessas cidades flutuantes, construíram balões, a que chamamos balsas, muitos deles rudimentares. Apenas um por cento da humanidade conseguiu ascender aos céus, escapando do inferno, lá em baixo. Uns seis milhões de navegantes. A maioria das balsas resistiu, infelizmente, pouco tempo. Caíram. Afundaram-se no mar. Dez anos depois do Dilúvio já só permaneciam entre as nuvens uns dois milhões de pessoas» (Quetzal, 2013). Até neste romance para os mais jovens, as diferenças económico-sociais marcam o destino dos homens. As consequências da irresponsabilidade humana recaem sobre os mais pobres, sobre os que na verdade menos contribuíram para ela. O mês de março foi devastador para Moçambique e para as regiões adjacentes. A região da Beira foi abalada pelo mortífero ciclone Idai, colhendo centenas de vidas e deixando milhares na mais extrema miséria, fazendo da água lisa um teto sobre a terra invisível. No romance de Agualusa, dificilmente haveria uma balsa para eles, lá em cima no mundo dos nefelibatas…
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional deSaint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org