Interview avec Boss AC
19 mars 2019Pâques: c’est quoi pour vous ?
2 avril 2019No ano de 1972, são publicadas As Novas Cartas Portuguesas (NCP) pela mão de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria de Fátima Velho da Costa. O livro apresenta 120 textos, entre poemas, relatórios, narrativas, ensaios e citações que denunciam a sociedade patriarcal e o lugar que nela cabe à mulher; a guerra colonial, que se iniciara em 1961, é também denunciada. As NCP partem das famosas Cartas Portuguesas, publicadas anonimamente em 1669, e cuja autoria (ainda discutida) é atribuída a uma freira portuguesa, Mariana Alcoforado.
As NCP foram imediatamente confiscadas pela censura do Estado Novo tendo em conta o caráter subversivo que continha. As “três Marias”, como foram apelidadas as autoras, são levadas a julgamento num processo movido pelo próprio Estado português. A cobertura mediática do acontecimento ultrapassou as fronteiras portuguesas chegando às páginas da imprensa internacional. Em 1973, o periódico francês Le Nouvel Observateur dedica um artigo às “três pecadoras de Portugal”, um texto de Claude Servan-Schreiber muito crítico do Estado português. Era hábito do semanário posicionar-se a favor dos direitos das mulheres; é ele que publica, em 1971, o Manifesto das 343, panfleto pela despenalização do aborto. As NCP foram traduzidas em várias línguas logo após a sua publicação em Portugal, criando um grande impacto junto dos movimentos feministas internacionais. Numerosas manifestações tiveram lugar frente às embaixadas portuguesas em vários países, reclamando a anulação do processo. Várias personalidades intervieram publicamente para defender as autoras; entre elas, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Stephen Spender, etc. O julgamento iniciado em outubro de 1973 foi várias vezes adiado, acabando mesmo por nunca acontecer com a Revolução de Abril.
Os textos representaram uma fervorosa condenação do regime e da sociedade em que assentava. Vejamos alguns excertos:
“Fêmeas somos / fiéis a nossa imagem / oposição sedenta que vestimos / mulheres pois sem procurar vantagem / mas certas bem dos homens que cobrimos / E jamais caça / seremos / ou objeto dado”. (pp. 30-31, ed. 2017)
“Mas como é que eu podia saber que o meu António havia de vir assim das Áfricas, ele que era uma pessoa, não desfazendo, de tão bom coração e desde que veio das guerras anda transtornado da cabeça e me mete medo, grita noite e dia, bate-me até se fartar e eu ficar estendida […] um dia vinha ele bêbado e eu chamei-lhe porco, “seu porco qué do dinheiro prá gente comer?” E ele respondeu: “cala a boca grande estupor que te mato”, então desatei a gritar, ele aí perdeu o tino e pôs-se-me a bater com quanta força tinha, por onde calhava, até que me deu a esgana e deitei cuspo pela boca, toda torcida no chão e ele sempre a bater, a bater, só não dando cabo de mim porque o menino coitadinho, se foi botar agarrado ao meu corpo e ele então de vê-lo tão fraquinho e assustado, teve vergonha e abalou […] voltou um mês depois, para me pedir desculpa com tão bons modos que o desculpei […] ao princípio tudo correu como dantes mas depois deu outra vez em beber, ter mulheres, não trabalhar e eu tive de continuar a andar a dias”. (pp.163-164)
“Uma filha, Mariana, uma filha que será, decerto, um anjo de doçura e linda como tu, calada e meiga como tu és e sempre fostes e por tal te amo. […] Saiba ela, Mariana, seguir-te o exemplo […] . E acima de tudo que saiba perdoar! Uma mulher que saiba perdoar as faltas a seu marido, compreensiva, terna e generosa é um modelo a apontar mais tarde às suas filhas. […] Se ao homem compete as grandes e graves decisões do mundo, a mulher compete o glorioso papel de criar os homens que edificarão esse mundo.” (pp. 258-259)
Desde o início de 2019, foram assassinadas 11 mulheres em Portugal, vítimas de violência doméstica. Simultaneamente, o juiz Neto de Moura foi alvo de grande visibilidade mediática por causa de vários acórdãos nos quais encontrou atenuantes para a violência, ou até a desculpou. Quando confrontamos os textos das NCP com os casos julgados por este senhor juíz parece-nos que a sociedade portuguesa parou no tempo. Com efeito, apesar dos progressos na condição feminina desde 1974, as desigualdades mantêm-se e o poder patriarcal parece não ter sofrido as profundas mudanças que se impunham. É preciso reler as NCP, este testemunho pungente de uma época cujas marcas ainda permanecem. Reler, sim, mas sobretudo criar condições para que a voz feminina se solte, seja ouvida e adquira um peso justo. O peso da voz do homem, nem mais, nem menos…
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional de Saint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org