Entrevista com o autor brasileiro de bandas desenhadas Marcello Quintanilha
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11 mars 2024No dia 24 de Janeiro de 2024, o autor brasileiro de bandas desenhadas Marcelo D’Salete estava na Livraria Portuguesa e Brasileira de Paris para um encontro. A Cap Magellan esteve presente e obteve uma entrevista exclusiva.
Cap Magellan: Olá Marcelo, espero que esteja tudo bem contigo. Estamos na livraria portuguesa e brasileira de Paris para o teu último livro, Mukanda Tiodora. Primeiro, é importante para ti estar aqui em Paris?
Marcelo D’Salete: Sim muito! O livro Mukanda Tiodora trata da história de uma mulher negra escravizada em São Paulo. Ela escreveu um conjunto de cartas, com ajuda de um outro escravizado. Estas cartas acabaram servindo de pano de fundo para pensar São Paulo no séc XIX, mas também a cidade, a província, o estado de São Paulo e todo sistema de escravidão naquele período. Esse sistema todo é uma coisa que acontece no Brasil naquele período, mas se conecta de certo modo com o que está acontecendo com boa parte da América e mesmo com reverberações na Europa. Creio que é importante que pessoas de outros locais, aqui na França também, conheçam essas histórias.
Cap Magellan: Pois, a história da escravidão no Brasil não é muito conhecida aqui na França.
Marcelo D’Salete: Essa história ainda é pouco divulgada e conhecida mesmo no Brasil. É uma historia muitas vezes contada a partir de uma perspectiva das elites económicas, sobre países, e poucas vezes tenta contar essa história a partir de personagens, homens e mulheres, negros. A gente sabe que a escravidão, como um todo, é um sistema que acontece de forma violenta no Brasil e na América, mas envolve também a Europa e a África, ou seja boa parte do mundo nesse tráfico. Enriqueceu muitas nações, muitos grupos e muitas pessoas. Em alguns locais do Brasil e fora do Brasil, é um assunto tratado quase sempre como um tabu. Creio que é importante que nós tenhamos diferentes tipos de narrativas para pensar nesse período com uma nova visão sobre esse momento.
Cap Magellan: Como é que encontraste as cartas?
Marcelo D’Salete: A primeira pesquisadora que estudou sobre a Tiodora foi uma historiadora chamada Cristina Wissenbach, no seu livro Vivências latinas, sonhos africanos e na sua pesquisa de mestrado. Isto acontece na década de 90, cerca de 30 anos atrás. Foi a primeira pessoa que, estudando sobre São Paulo em 1996, descobriu este conjunto de 7 cartas com autoria da Tiodora. Foi a partir desse livro que cheguei às cartas e vi que elas tinham um potencial enorme de se transformar em narrativas num formato de histórias em quadrinhos.
Cap Magellan: Fizeste tudo sozinho?
Marcelo D’Salete: Grande parte do livro sim, mas sempre dialogando com outros historiadores, como a própria Cristina Wissenbach. A história em quadrinhos em si trata ficcionalmente as cartas da Tiodora. Não é uma história totalmente realista, mas é uma história ficcional inspirada nas cartas, tentando reconstituir aquele momento e tentando criar a possibilidade de ler essas cartas e de pensar naquele momento. O livro conta no final com uma série de extras: mapas, fotografias, posfácios, um texto da historiadora Cristina Wissenbach sobre as cartas e a Tiodora. Essa parte foi feita com a ajuda de outros historiadores e pesquisadores.
Cap Magellan: Quanto tempo demoraste antes da publicação final?
Marcelo D’Salete: Demorou bastante. Foi cerca de 7 ou 8 meses para as pesquisas e a finalização do roteiro, e mais cerca de 2 anos e meio para a finalização do livro: a elaboração dos desenhos e a finalização de cada uma das páginas, a elaboração final do formato do livro. No total fez cerca de 3 anos. Mas antes disso, tenho os outros livros Cumbe e Angola Janga. Este último levou cerca de 11 anos para ficar pronto. Grande parte das leituras e pesquisas foram uns 5 anos, o que também serviu de pano de fundo para a elaboração do livro Mukanda Tiodora.
Cap Magellan: Com as tuas bandas desenhadas queres lutar para a comunidade preta no Brasil?
Marcelo D’Salete: Podes dizer negro! Os quadrinhos e os livros em geral são uma contribuição enorme para que a gente possa aprender mais sobre essas histórias e para que a gente possa também dialogar. Imagino que, hoje em dia, temos disputas de narrativas: sobre o Brasil, sobre São Paulo, sobre o que foi a escravidão, sobre a presença negra do Brasil, etc. É importantíssimo que a gente tenha diferentes ferramentas para lidar com isso. Os quadrinhos podem contribuir muito, porque é um meio extremamente dinâmico para oferecer um tipo de leitura que atinge diferente tipo de público, desde o juvenil até adultos e idosos. É uma ferramenta que, potencialmente, é um ponto de partida para grandes reflexões e discussões. É relevantíssimo que nós tenhamos esse tipo de produção também para falar sobre a história negra no Brasil.
Cap Magellan: Porque decidiste desenhar a preto e branco?
MDS: Gosto muito do trabalho em preto e branco. É uma escolha e uma preferência estética minha. Aprecio muito diversos outros quadrinistas que conseguem fazer isso em preto e branco. Acabou sendo uma decisão minha ao longo desses anos todos, nas diversas publicações de histórias em quadrinhos.
Cap Magellan: Quais são os teus futuros projetos?
MDS: Estou pensando em alguns projetos mais históricos e estou procurando trabalhar com temas um pouco mais contemporâneos. São 5 livros publicados de autoria minha, 3 livros com temas mais históricos, outros 2 mais contemporâneos. Neste momento gostaria de voltar a trabalhar com temas mais contemporâneos. Isso, para os próximos anos.
Cap Magellan: Para acabar, a pergunta que faço sempre no final das minhas entrevistas: tens uma mensagem para os jovens lusodescendentes?
MDS: Penso que nós precisamos muito avançar em pesquisas, estudos, discussões e divulgação no sentido de ter uma compreensão muito mais rica, complexa, sobre a relação entre Brasil e Portugal, sobre o que foi a questão do colonialismo, da escravidão, mas pensando no modo como que isso uniu, de uma forma extremamente violenta, diferente partes do mundo. É importante que a gente reconheça a presença e a contribuição desses diversos grupos na formação de toda essa cultura ao redor do Atlântico. Acho que é mais do que necessário que isso aconteça tanto no Brasil como em Portugal, nos países de língua portuguesa e outros locais. Acho que temos ainda muito a pesquisar, a aprender e a compartilhar também. Estamos apenas no início disso!
Cap Magellan: Obrigada Marcelo! Vamos contribuir.
Convidamo-lo em ir comprar Mukanda Tiodora, disponível em todo o lado!
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Entrevista realizada pela Julie Carvalho,
de Os Cadernos da Julie.