Interview exclusive avec le musicien Fernando Del Papa
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16 janvier 2024Marcus Veiga, mais conhecido sobre Scúru Fitchádu, estava em Paris para um concerto na quinta-feira 26 de Outubro de 2023 depois do Antti Paalanen, auto-grupo finlandês para os Villes des musiques du monde. Scúru Fitchádu é um grande nome da música eletrônica no mundo, viajando e representando-se em toda a Europa e até mais! Marcus mistura este estilo musical específico com a música cabo-verdiana, nomeadamente a funaná, que o criou. Ofereceu-nos uma entrevista exclusiva!
Cap Magellan : Olá, espero que esteja tudo bem contigo. Tu és Marcus Veiga, mais conhecido por Scúru Fitchádu. O que significa este nome?
Marcos Veiga: A tradução literal de Scúru Fitchádu é “escuro serrado” ou “escuro denso”, algum escuro forte. Também havia um grupo cabo-verdiano dos finais dos anos 80 chamado Black Power e eles tinham, tiveram um álbum chamado “Scúru ta fitcha” que quer dizer “escuro está a fechar-se, está a bater”. Depois de ter passado um tempo sobre uma música com um amigo que também canta, ele disse “Scúru ta fitcha”. Eu já estava a magicar esse projeto, a misturar a cena do funaná e da música, de misturar com electrónica, uma cena agressiva. Achei que era um nome perfeito, como sou assim um pouco dark e a minha música, então acho que foi o casamento perfeito.
Cap Magellan: Nasceste em Lisboa, então porque quisestes voltar às tuas origens cabo-verdianas?
Marcos Veiga: Há uma meta não é? Dás tantas voltas: cresces no meio da cena portuguesa, do rock’n’roll, da cena toda que os meus colegas e eu ouvíamos na adolescência mas, depois sentes que falta-te ali algo mais genuíno. E o quê que é algo de mais genuíno? É sempre as nossas raízes. Os projetos ganham um bocado por aí: por voltar às raízes e voltar a fazer alguma coisa mais genuína possível, mais honesta que é pegar nas origens e basicamente foi um resgate. Ia-me interessando pela tradição e ia-me interessando por saber quem era a minha família, de onde é que eu vim, por onde é que passamos antes de vir para Portugal, etc.
Cap Magellan: Mas a tua mãe é de Angola, então porque não Angola?
Marcos Veiga: Pois, é uma boa pergunta. Quando nós viemos, ambas as famílias vieram: do meu pai, de Cabo Verde e da minha mãe, de Angola. Vivi muito dentro do meu pai e tive pouco contacto com a de Angola. Ainda vou a tempo, obviamente. É uma cultura muito vasta mas ganhei mais afinidades com Cabo-Verde, comecei a aprender a falar o criolo por exemplo. Ganhei muito mais afinidades rapidamente com a cena de Cabo-Verde mas gosto muito da cena de Angola. Igualmente, com a cena de Cabo-Verde, se eu tivesse alguma dúvida falava com um tio mais velho, ou com uma avó e eles tinham as respostas. Como tenho pouco contacto com a minha família do lado da minha mãe, que por acaso vive em Peniche e em Espinho, não posso ter respostas imediatas. Mas, é algo que não é porta fechada. Aliás, com Scúru Fitchádu nada é fixo.
Cap Magellan: Pois e falas de toda a África lusófona, nao so de Cabo-Verde. É o que vemos no teu último álbum Nez Txada skúru dentu skina na braku fundu.
Marcos Veiga: Exatamente, falo da Guiné Bissau, de Moçambique, há muita coisa por falar. O álbum anterior a esse, estava mais eletrônico, mas estava mais Cabo-Verde com muita funaná. Para este, já vou buscar lives de todo o lado, samplo muito e também vou buscar muita história do que foi dito, do que foi passado, vivido, experienciado pela cena colonial, também da cena da Guiné Bissau, de Moçambique, de Angola. Vou-me informando com pessoas que estiveram lá mesmo.
Cap Magellan: Como é que consegues falar com essas pessoas, porque muitos já faleceram, não?
Marcos Veiga: Sim, algumas já faleceram mas vou registando. Coisas de que me falaram na altura que já não consigo chegar a elas mas que me ficaram e vou resgatando no que elas disseram e aí, faço as pesquisas em papel ou online. Faz sentido que eles disseram. As rodas que os brasileiros chamam de “terreiro” mas nós lá tínhamos uma outra cena que era igual ao terreiro mas na qual também se contavam histórias. Aqui em Portugal são chamados os “Condos de Ninar”, quando é para adormecer as crianças. Lá também, na ilha do Fogo, também existe isso.
Cap Magellan: Mas, então a tua música tem esse aspecto histórico. É alguma coisa que queres transmitir?
Marcos Veiga: Sim. Não sou nenhum acadêmico nem nada, mas gosto de espalhar sempre uma maneira de descrição construtiva, tentar, do que nós vivemos. Eu não gosto muito de fazer arte só por uma cena performativa e estética. Acho que temos de aproveitar da arte como veículo de informação e de protesto, de sensação. Não quer dizer que eu tenha uma mensagem super positiva. Gosto da arte quando tem esse lado de falar das coisas e de abordar pelo menos, de debater. Não pode ser só os bonitinhos. A minha linha pelo menos é esta.
Cap Magellan: A arte faz também parte daquele aspecto de fazer passar mensagens. Tenho uma pergunta em relação a isso: Como é que vivestes em Lisboa, jovem, vindo de um pai cabo-verdiano e de uma mãe angolana?
Marcos Veiga: Nasci em 80. O que nós achávamos que era normal, agora vemos que não era mesmo normal. Havia ali provações sobre provações. Coisas mínimas: provações na sala de aula, descriminação na sala de aula assim derrapante. Já nascestes cá e achas que isso é o teu normal, mas acaba por não ser. Há coisas boas, claro. Nascer em Portugal foi muito bom, tive super colegas e malta, tive sempre essa vantagem de conseguir estar em várias comunidades diferentes, com malta africada, com o pessoal português. Deu-me armas e deu-me ferramentas. Acredito que eu ficava um pouco limitado se não conseguisse esse contra-peso das duas comunidades. Se bem que a cena africana, no meu caso, não foi tão desenvolvida. Nasci em Lisboa, mas depois fui colocado no Oeste, na zona das Caldas da Rainha e do Bombarral, Torres Vedras, que era um bocadinho mais fora das cidades e onde não havia tanta comunidade africana. Andei ali uns anos a procurar perceber quem é que sou. Depois do final da tua adolescência tens a noção: “ok eu sou diferente, mas diferente do quê? Os meus pais são africanos, quer dizer o quê? é só a cor da pele que muda, é o quê, é o falar?”. Não, eu também tenho uma outra cultura atrás. Posso juntá-las. Tínhamos uma casa muito velhinha, quase a cair, em Bombarral, e eu lembro-me da minha mãe estender a roupa a cantar Cidália, que era uma fadista que tocava guitarra. São coisas que me ficaram. Deste sempre, tive esse cruzamento: nunca foi uma ou outra. Sempre percebi que dava para cruzar coisas. Obviamente que na minha adolescência eu queria ouvir o que os meus colegas ouviam todos. Só no final da adolescência que comecei a olhar e dizer-me “oh pá espera lá, sou mais do que isto, sou mais do que um carneirinho que vai ouvindo o que a MTV passa, portanto deixa-me ouvir que os meus pais ouviam”. Odiava o que o meu pai ouvia, mas depois comecei a gostar. Agora estamos a ouvir o que os nossos pais ouviam e brincamos com isso. O meu pai ainda brinca comigo: “então gozavas comigo”. Eu não tinha acesso a nada mas tinha acesso a tudo. Havia pouca distração se calhar, mas ali consegui simplificar tudo e era tudo mais simples. Obviamente que se fosse nascido ou criado dentro de uma comunidade homogênea, africana ou portuguesa só, eu ia ficar coxo, ia faltar aí alguma coisa. Essa é a procura que continuo a fazer. Isto é um trabalho contínuo, de acumulação.
Cap Magellan: Sempre quisestes fazer música?
Marcos Veiga: Sempre vi a música como um espaço de foco. Fui muito introvertido na altura e andava muito sozinho miúdo. Sempre achei incrível ver alguém no palco e dizer-me que, não importa o que ela faz ou é no resto da vida, mas durante os 50 ou 70 minutos durante os quais encontra-se no palco, as pessoas estão realmente a ouvir, a ver, a exprimir-se de alguma forma com o que está a fazer. Ser famoso nunca me interessou. Sempre vi o facto de fazer música como algo inatingível, mas estudava muito o que se fazia, mesmo no aspecto técnico, como é que as pessoas diziam as palavras, como faziam música, como é que apresentavam uma música. Sempre tive esse olhar mais clínico ainda que eu não sabia como se fazia músicas. Só comecei a fazer música já na era dos computadores, com os programas pirateados. Aí é que consegui exprimir-me.
Na verdade, comecei a escrever muito novo ainda, nas minhas aulas. Posso não ter física, ter educação visual, mas português era a minha cena de escrever, de ouvir e de poder escrever textos e de poder desenvolver textos, essa era a minha cena. Porque eu li muita banda desenhada para começar, então sempre tive essas cenas criativas, de contar histórias e foi um bocado aí. Desenvolvi muito antes sequer de ter um caminho musical. Depois obviamente na minha adolescência tive vários inputs: os Da Weasel que aparecerem, a cena do hip-hop, havia muita coisa ali que começou a fazer-me interessar cada vez mais pela escrita e transformar os meus pensamentos em palavras. Também ao nível criativo, como venho do tempo das cassetes, tentava sempre fazer gravações e punha a gravar e cortar. Isso foi uma boa escola: fazer música com sons que não eram meus, aqueles chamados samplings, que me educou bastante para conhecer mais música. O sampling também não é só música. Posso samplear o que o Sérgio Godinho disse num concerto no Campo Pequeno há 20 anos atrás, desde que seja creditado!
Cap Magellan: Como é que tiveste a ideia de fazer funaná electrónica?
Marcos Veiga: Sempre tive uma paixão, ou sempre uma leve inclinação para a música mais densa, mais musculada. Gosto muito de ouvir funaná em casa e, ali em Cabo-Verde, era a cena que mais se aproximava do que eu estava habituado a ouvir: The Prodigy, os Nirvana, os Ratos de Porão, etc. Também tentava fazer cenas de funaná em casa. Foi fácil esse cruzamento por causa do tempo: ouvia base music, uma música musculada que está no mesmo compasso, ainda que o funaná fez uma utilidade aí nas festas. Toda a gente adora e dança mas eu via que a cena podia ir mais além, mais psicológico, mais vistral, etc. Vamos lá pôr mensagens nisso, vamos lá pôr um pé na porta e foi esses ingredientes que tornaram o projeto como é agora.
Cap Magellan: Há um instrumento que utilizam: o ferrinho. O quê que é o ferrinho?
Marcos Veiga: O ferrinho na verdade é uma cantoneira. A cantoneira é tipo um ferro que serve de base das camas antigas e dos sofás, que é tipo um ferro comprido mas são dois ferros colados compridos, e, eles, quando tocados com um outro pedaço de ferro, faz um som distinto. Há várias técnicas de se fazer soar mais agudo, mais grave, mas na verdade, é o único instrumento que eu sei tocar. Comecei na adolescência. Ouvia em casa com a cena do funaná e eu ali a tocar. Tentei desenvolver o ferro que aparentemente é muito limitado. O ferrinho é uma produção tradicional do funaná original que vem do interior de Santiago, da gente que trabalhava no campo, que nas horas de pausa pegavam na concertina que chegou. Há várias teorias mas levam-me a acreditar em duas correntes: a portuguesa normalmente com a gente do Minho que levaram para lá e a corrente dos pescadores brasileiros para a África do Sul que chamavam a sinfoma e depois, foram subidos. Há essas duas rotas, não sou acadêmico e apanho que o que eu vou lendo aqui e ali, alguns livros, algumas teses percebes. Nomeadamente quem tem um bom estudo é o Mário Lúcio, hoje Primeiro Ministro de Cabo-Verde que também é um grande músico. Ouço porque ele é um musicólogo e historiador.
Cap Magellan: O ferrinho também funciona muito bem com a música eletrônica.
Marcos Veiga: Exatamente e, na minha música, entre um bocadinho mais para além do funaná. Também não quis ficar preso ao funaná. O funaná foi a porta de entrada e o meu ritmo agora é este. Mas eu consigo ir a várias nuances: consigo pôr o ferrinho em toda a minha paleta, porque faz tanto o papel do agudos numa bateria que são os pratos que eu tiro da minha produção porque o ferro faz isso tudo, pode ser também a bater. Tenho ali várias hipóteses!
Cap Magellan: Toda a gente diz que és incrível a ver no palco! Como é que imaginas o ensaio antes de fazer?
Marcos Veiga: Como comecei a ver música ao vivo muito cedo, ainda miúdo, assim às escondidas, sempre associei a música não ao CD, ou à cassete que está a tocar, nem do videoclipe, mas à performance. Também sempre fui uma pessoa muito física, sempre fiz desportos de combate muito cedo e sempre tive aquela cena de aguerrida de exprimir-me fisicamente. É estranho, mas sempre fui muito envergonhado e o palco é onde faço a cena mais descaída possível que eu na vida normal fazia. Aquilo é interpretar a minha própria música e entregar como ela tem que ser entregada. Aquilo tem que ser um brulhado e ser entregado e entregue mesmo daquela forma. A minha música é feita para ser tocada ao vivo, para ver-se ao vivo mais do que ouvi-lá em casa.
Cap Magellan: Qual é a relação que tens com o teu público?
Marcos Veiga: É uma relação muito horizontal porque eu falo com todos eles. Não sou um artista de quantidade, tenho muito poucos seguidores mas são aguerridos. A malta que conhece, percebe a cena toda, não é só “ah ele tem uma malha fixe”, não é “vamos ver o Scúru”. Tenho malta que já foi 10 vezes no meu concerto e não sabe uma única música minha, não sabe. Porque é uma experiência, tem que ser performativo. Eu gosto quando as pessoas vêm e expressam-se.
Cap Magellan: Como é que foi recebido o novo álbum?
Marcos Veiga: O outro era um pouco mais anárquico. Nesse, as pessoas começaram a perceber que não é só porrada 90 minutos, não é só barulheira, tento passar mensagens. Acho que foi bom o outro álbum ter sido o primeiro, porque abriu a porta sobre o meu estilo musical. Quem não gostou largou logo e quem gostou ficou integrado. Este álbum aqui tem um bocado do outro mas tem mais camadas a nível do conceito. Adoro a cena do objeto conceitual, seja um quadro, seja um livro, seja um álbum, um artista; sempre que há um conceito por trás torna-se mais do que um álbum que tem músicas fixes. Tudo é feito de uma maneira muito honesta. Acho que é aí. Não é feito para massas mas para quem seja predisposto.
Cap Magellan: As pessoas que ouvem a tua música são na maioria de origem africana?
Marcos Veiga: Todos. Tenho orgulho de ser embaixador da cultura Cabo-Verde na Eslovênia por exemplo, onde ninguém tinha ouvido falar desse país. Fui lá, toquei e ainda há pessoas que mandam-me às vezes mensagens a dizer que descobrirem artistas de funaná depois. Encontras de tudo e a arte deveria ser importada assim, devia ser horizontal para toda a gente.
Cap Magellan: Tenho uma última pergunta, é uma pergunta que faço ao final de cada entrevista. Tens uma mensagem para os luso-descendentes?
Marcos Veiga: Que continuem luso-descendentes porque é isso que lhe faz dar o brilho. Sei que são muitos, que há mesmo muita gente aqui na França. Não tens de fazer escolhas porque isso é que vai trazer o brilho em qualquer produto que estejam a fazer, sejam engenheiro, arquitetos, médico ou outro, é isso é que vai diferenciar. O que no final do dia vai sobressair é esse cruzamento e esse acúmulo das duas: escolher nem uma nem outra, acumular os dois. É recolher o melhor dos mundos porque todos temos coisas boas e é no bom, que temos de nos focar.
Cap Magellan: Muito obrigada Marcus! Desejamos-te um bom show e que venham muito mais.
Foi um show fenomenal mais uma vez!
Não hesite em seguir o trabalho de Scúru Fitchádu em todo o lado (YouTube, Instagram, Facebook, Spotify, Deezer) e em ir vê-lo no palco logo que puder!
Entrevista realizada pela Julie Carvalho,
Transcrição pela Sophie Abreu.