#CrónicasdoLiceu : Os filhos do vento
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4 juin 2019Assinala-se este ano a passagem de um século sobre a publicação de um dos textos fundadores do espírito europeu: A Crise do Espírito, do escritor e filósofo francês Paul Valéry. Publicado em Paris pela NRF, Valéry definia aí as grandes linhas do que considerava ser a civilização europeia. Em forma de panegírico, o texto pretendia, nos escombros da Grande Guerra, dar novo ânimo a um espírito europeu em crise. Para o autor, a grandeza da Europa estava na sua aptidão, ao longo dos séculos, em conjugar uma intensa capacidade criadora com um profundo poder de absorção das culturas que lhe eram alheias. Ao sair dos horrores da guerra, Valéry questionava então o leitor sobre o devir do continente e sobre a sua capacidade em reinventar-se. A Europa guardaria a sua preeminência ou transformar-se-ia naquilo a que a condena a sua posição geográfica, isto é, um pequeno cabo do continente asiático?
O fim da Primeira Guerra Mundial marcou uma inversão no panorama político e económico mundial. As nações europeias, arruinadas e exangues, deixaram de ser o farol que orientava o mundo. Após quatro anos de carnificina, restava aos europeus levantarem-se de um chão ensopado do sangue dos seus filhos e unirem-se finalmente. A história da Europa, partindo do remoto mundo clássico aos nossos dias, confere toda a legitimidade a esse desejo: vários projetos, várias conceções, várias visões, mas todas amparadas pela mesma noção de comunhão entre os povos do “velho continente”. Usando as palavras de Karl Ferdinand Werner podemos afirmar que «a Europa sabe que já existe há longo, longo tempo».
A noção de união surge no ideário europeu nos primórdios civilizacionais do continente, nos autores greco-romanos em particular. No entanto, é já na Idade Média que encontramos a primeira referência aos Europeus enquanto conjunto único de população. São assim nomeados pela primeira vez durante o período da Reconquista da Península Ibérica, na Crónica Moçárabe de 754. Na verdade, é no olhar do outro que os Europeus adquirem consciência de si e do que liga estes povos aparentemente diversos: uma cultura. Durante os séculos seguintes, são elaborados diversos planos de união apelidados de “paz universal”, desejando todos concorrer para a criação de uma estrutura unificada pacificadora. Planos de pouco impacto prático. Porém, já no século XIX, é com o célebre escritor francês, Vítor Hugo, que a construção europeia ganha contornos mais sólidos. Em 1849, o ilustre autor de Os Miseráveis profetiza que «um dia virá em que os morteiros e as bombas serão substituídos pelos votos, pelo sufrágio universal dos povos, pela venerável arbitragem de um Senado europeu soberano […]. Um dia virá em que veremos estes dois imensos grupos, os Estados Unidos da América e os Estados Unidos da Europa, frente a frente de mão estendida por cima dos mares». A profecia ainda está por cumprir mas é esse o trilho a seguir.
A história europeia fez-se de inúmeras desavenças, guerras e barbárie. Porém, também se fez na criação de um espírito próprio, de valores comuns, tecendo uma complexa rede política, económica, social e cultural. A Europa edificou-se no cruzar de várias aquisições: na descoberta do Homem/indivíduo, dos valores espirituais e das noções de ponderação e juízo oriundos da civilização grega; do direito como base de uma ordem política com vocação universal decorrente de Roma; da ética transcendente judaico-cristã. É esta trilogia, Grécia-Roma-Cristandade, que caracteriza os alicerces do espírito europeu. Hoje, envolta nas intrincadas conexões da globalização, a Europa é cada vez mais cosmopolita. Cada vez mais complexa e fecunda. No entanto, a distância entre um lisboeta de Campolide, um berlinense de Kreuzberg ou um ateniense de Plaka é bem curta. Ambos partilham de um legado comum. Essa herança é a base da construção de uma Europa dos povos, credível. Sobre ela devemos construir o futuro do continente e a garantia da sua prosperidade e da paz.
No último mês de maio, os eleitores europeus expressaram-se nas urnas, elegendo os deputados que os representam no Parlamento europeu. Mais uma vez, a abstenção venceu, as posições extremadas também, corroborando a expressão de uma profunda crise do modelo europeu vigente. O Brexit, que demora em concretizar-se, é talvez a expressão maior desse contexto. Urge reformular a Europa, reinventá-la, reaproximando-a dos seus cidadãos, ou voltaremos a ser esse pequeno cabo da Ásia que a geografia nos impõe…
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional deSaint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org