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2 mars 2019Decidimos, hoje, recorrer aos contos para tentar entender melhor o presente, isto é, usar de um recurso literário para alumiar algumas realidades mais sombrias da atualidade. O conto pode ser entendido como uma «história ou uma breve narrativa, transmitida oralmente ou por escrito, que trata especialmente de acontecimentos lendários ou extraordinários» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, ACL, Ed. Verbo). Assim, os contos são, também eles, um testemunho da representação do mundo. O escritor moçambicano, Mia Couto, tem tido especial relevo em contar histórias do passado, aclarando as sociedades do presente e as relações entre os seus indivíduos. Em 1990, publica uma coletânea de contos intitulada Cada Homem é uma Raça, da qual destacamos um dos mais notáveis: “O embondeiro que sonhava pássaros”. Abordaremos, assim, uma questão que tem perpassado os limiares da História e que teima em estar na ordem do dia: o racismo.
O vendedor de pássaros não tinha nome. Todos o conheciam por “passarinheiro”, pelo ofício que ocupava os seus dias, como se a ausência de identidade civil o extraísse do mundo dos homens. Era um homem negro, desterrado no seu próprio chão, na terra dos seus antepassados. Nestes campos que o viram crescer, mandava o governo dos brancos. Ocupava os seus mornos dias a vender aves silvestres. Todas as manhãs penetrava no bairro dos colonos com as suas gaiolas para alegria das crianças que, na inocência pura dos seus corações, o tinham em genuína amizade. Os pais das crianças olhavam com reprovação para o cenário festivo que então se desenhava no bairro. A presença deste indígena, que preenchia de histórias fantasiadas e de contos mágicos a imaginação das crianças, era uma afronta para eles. Tiago era um dos mais entusiastas amigos do “passarinheiro”. Um dia contara aos pais que o vendedor habitava o tronco oco e robusto de um embondeiro, «uma árvore muito sagrada [que] Deus plantara de cabeça para baixo». A censura do pai foi inequívoca: «Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança». Aos poucos, o vendedor tornou-se o assunto principal das conversas dos colonos. O canto melodioso das aves espalhava-se pelo bairro. Os colonos sentiam-se estranhos neste recanto de terra alheia que tinham tido todo o cuidado em aportuguesar: «culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça». Era uma má influência para os meninos que «por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento». Um dia, as aves que o “passarinheiro” tinha vendido criaram grandes distúrbios no bairro, fugindo das gaiolas, espalhando alpista nas gavetas, abrindo as portas dos guarda-roupas. O negro não era bem-vindo no bairro e os colonos organizaram-se para lhe dar a entender. Tiago, que ouvira as intenções dos adultos, correu para avisar o seu amigo “passarinheiro”. Mas ele recusa partir. Digno filho da terra, quer esperar pela vinda dos hóspedes. Os colonos chegam finalmente, barulhentos, cercando o lugar e logo espancam o vendedor. Por fim, amarram-lhe as mãos e é levado para o cárcere. Entretanto, Tiago volta para o tronco oco do embondeiro, o único refúgio capaz de apaziguar o seu coração despedaçado. Na manhã seguinte, a cela do “passarinheiro” estava misteriosamente vazia. Enfurecidos, os colonos partem à procura do fugitivo. Voltam para o embondeiro e acercando-se dele ouvem o som da gaita do vendedor. Cheios de raiva ateiam fogo à árvore pensando que lá se encontrava o “passarinheiro”: «As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. […] As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para as suas recentes raízes».
O racismo é fruto da ignorância, do desconhecimento, do medo do outro, daquele que se acerca da nossa fronteira; é fruto da incompreensão, da pequenez humana. Está adormecido no coração de todos os homens. Está em nós, pronto a renascer para mascarar as nossas falhas, para dar respostas fáceis a perguntas complexas e, assim, evitar-nos trabalhosas reflexões. Nunca na história da Humanidade, a informação sobre o outro esteve tão disponível. O que explica então tamanha cegueira? A preguiça, talvez… Todos os países são racistas. Porque qualquer homem pode vir a sê-lo. A posição de dominador a isso nos predispõe. Portugal e os Portugueses não são exceção. Os acontecimentos deste início de ano são a evidência desse pressuposto; sentimentos recalcados, dissimulados, subentendidos, nalguns casos, bem manifestos, noutros. Numerosos atos de racismo diário, também.
Em forma de súmula ao seu compêndio de contos, Mia Couto imagina o interrogatório do vendedor de aves: «Inquirindo sobre a sua raça, respondeu: – A minha raça sou eu, João Passarinheiro. […] Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor polícia».
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional deSaint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org