O vendedor de pássaros não tinha nome. Todos o conheciam por “passarinheiro”, pelo ofício que ocupava os seus dias, como se a ausência de identidade civil o extraísse do mundo dos homens. Era um homem negro, desterrado no seu próprio chão, na terra dos seus antepassados. Nestes campos que o viram crescer, mandava o governo dos brancos. Ocupava os seus mornos dias a vender aves silvestres. Todas as manhãs penetrava no bairro dos colonos com as suas gaiolas para alegria das crianças que, na inocência pura dos seus corações, o tinham em genuína amizade. Os pais das crianças olhavam com reprovação para o cenário festivo que então se desenhava no bairro. A presença deste indígena, que preenchia de histórias fantasiadas e de contos mágicos a imaginação das crianças, era uma afronta para eles. Tiago era um dos mais entusiastas amigos do “passarinheiro”. Um dia contara aos pais que o vendedor habitava o tronco oco e robusto de um embondeiro, «uma árvore muito sagrada [que] Deus plantara de cabeça para baixo». A censura do pai foi inequívoca: «Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança». Aos poucos, o vendedor tornou-se o assunto principal das conversas dos colonos. O canto melodioso das aves espalhava-se pelo bairro. Os colonos sentiam-se estranhos neste recanto de terra alheia que tinham tido todo o cuidado em aportuguesar: «culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça». Era uma má influência para os meninos que «por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento». Um dia, as aves que o “passarinheiro” tinha vendido criaram grandes distúrbios no bairro, fugindo das gaiolas, espalhando alpista nas gavetas, abrindo as portas dos guarda-roupas. O negro não era bem-vindo no bairro e os colonos organizaram-se para lhe dar a entender. Tiago, que ouvira as intenções dos adultos, correu para avisar o seu amigo “passarinheiro”. Mas ele recusa partir. Digno filho da terra, quer esperar pela vinda dos hóspedes. Os colonos chegam finalmente, barulhentos, cercando o lugar e logo espancam o vendedor. Por fim, amarram-lhe as mãos e é levado para o cárcere. Entretanto, Tiago volta para o tronco oco do embondeiro, o único refúgio capaz de apaziguar o seu coração despedaçado. Na manhã seguinte, a cela do “passarinheiro” estava misteriosamente vazia. Enfurecidos, os colonos partem à procura do fugitivo. Voltam para o embondeiro e acercando-se dele ouvem o som da gaita do vendedor. Cheios de raiva ateiam fogo à árvore pensando que lá se encontrava o “passarinheiro”: «As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. […] As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para as suas recentes raízes».
O racismo é fruto da ignorância, do desconhecimento, do medo do outro, daquele que se acerca da nossa fronteira; é fruto da incompreensão, da pequenez humana. Está adormecido no coração de todos os homens. Está em nós, pronto a renascer para mascarar as nossas falhas, para dar respostas fáceis a perguntas complexas e, assim, evitar-nos trabalhosas reflexões. Nunca na história da Humanidade, a informação sobre o outro esteve tão disponível. O que explica então tamanha cegueira? A preguiça, talvez… Todos os países são racistas. Porque qualquer homem pode vir a sê-lo. A posição de dominador a isso nos predispõe. Portugal e os Portugueses não são exceção. Os acontecimentos deste início de ano são a evidência desse pressuposto; sentimentos recalcados, dissimulados, subentendidos, nalguns casos, bem manifestos, noutros. Numerosos atos de racismo diário, também.
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional deSaint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
capmag@capmagellan.org