Hommage Gérald Bloncourt – Le photographe qui a donné une mémoire aux Portugais de France.
28 octobre 2019Dia 31 de Outubro ficará na História ?
1 novembre 2019O conceito de democracia supõe necessariamente a orientação para um governo acessível ao maior número (o povo – demos da tradição grega). Representa, assim, uma forma superior de eliminar a contradição, sempre latente, entre o indivíduo e a coletividade organizada.
Em 1835, Alexis de Tocqueville, filósofo e político francês, publica Da democracia na América que descreve e analisa aquele que era considerado, na primeira metade do século XIX, o regime democrático mais conseguido. Se bem que dono de uma história nacional multissecular, a democracia portuguesa não se pode arrogar de raízes tão distantes. A revolução de Abril de 1974 é, sem dúvida, o seu momento fundador, porém, podemos também ver nela a consolidação de uma democracia que esteve em gestação durante séculos. É que, a bem dizer, encontram-se em tempos bem mais longínquos premissas de democratização, em particular na organização do poder municipal oriundo da Idade Média.
Alexandre Herculano é considerado, com Oliveira Martins, um dos mais notáveis historiadores do século XIX. Autor eclético e prolífico, publica, entre 1846 e 1853, os quatro volumes da sua História de Portugal, na qual confere ao período medieval um especial relevo. É neste contexto que articula a questão das origens da democracia em Portugal com o poder municipal. O concelho é visto como o lugar de oposição do «homem de trabalho contra os poderosos», isto é, um espaço de afirmação do mérito perante o privilégio estabelecido pelo nascimento. As cartas de foral, que consignam os direitos dos vizinhos (os residentes do concelho), são assim o instrumento de um poder que se quer organizar “de baixo para cima”. Para Herculano, «a história da instituição e multiplicação dos concelhos é a história da influência da democracia na sociedade, da ação do povo na significação vulgar desta palavra, como elemento político» (in Hist. Portugal, tomo III, livro VI, parte II).
É no entanto evidente que o homem medievo, elemento de uma sociedade altamente hierarquizada segundo princípios económicos e religiosos, não entende a democracia como a consideramos hoje. A democracia, na sua completa aceção, só virá à superfície na luta contra o absolutismo e no processo de instauração constitucional, principalmente na Constituição de 1822. O texto garante o fim dos privilégios e a igualdade perante a lei, a liberdade de opinião, o poder legislativo nas mãos dos deputados eleitos, a autoridade do rei emanando da Nação soberana. Porém, a democracia não é plena, já que perdura a escravatura e que largas categorias sociais são privadas de participação cívica. O advento da República e a Constituição de 1911 mantêm praticamente idêntica a ideologia presente nos textos anteriores; é nas leis promulgadas que a democracia ganha terreno. Segue-se o longo interregno antidemocrático e fascizante do Estado Novo que suspende as liberdades e confisca os direitos. Da Revolução de Abril eclode a Constituição de 1976 que consagra os direitos fundamentais da cidadania, as orientações políticas e os princípios essenciais que regem o Estado democrático. Neste âmbito, a Assembleia da República é o Parlamento Nacional escolhido pelos eleitores através do sufrágio universal, um dos órgãos de soberania consagrados na Constituição, representando todos os cidadãos.
Foi para eleger esta assembleia do povo que os portugueses se deslocaram até às urnas de voto no passado dia 6 de outubro. Dos resultados da votação sobressaem a abstenção maciça, a importante maioria concedida ao PS e a crescente diversidade que compõe o painel de deputados. São mais mulheres: 86 deputadas que perfazem perto de 38% do total, uma porção inédita. As minorias étnicas e sociais estão mais representadas mas, contudo, ainda bem longe do exigível. São mais partidos: 9 no seu todo, número só superado pela legislatura iniciada em 1980. São mais padrões ideológicos também. E aqui devemos destacar a entrada no Parlamento do Chega. André Ventura, com um discurso xenófobo e profundamente demagógico, irá sentar-se nos bancos da assembleia da Nação para cumprir o mandato que parte dos eleitores lhe concedeu. A extrema-direita volta a ter um púlpito para discursar. Cabe-nos estar atentos mas sem censurar ou tentar calar quem foi democraticamente escolhido (como outras figuras históricas no passado…), não permitir que o tirano vista o papel de vítima. O caso da Frente Nacional em França é um bom exemplo do que se deve evitar fazer. Responder, sempre, através do debate parlamentar e deitar por terra os argumentos ocos e vis com a sensatez, a lucidez e a precisão de um discurso assente nos valores democráticos. É que a democracia portuguesa, maturada por séculos de História, pode estar em perigo…
Miguel Guerra – Professor de História
SIP – Liceu Internacional de Saint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
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