Calíope (“que tem bela voz”) era uma das nove Musas do Olimpo. Era a mais velha e mais sábia de todas e dominava a arte de bem falar, sendo por isso apresentada como a Musa da Eloquência, para além de estar ligada à poesia e às ciências. Calíope era frequentemente representada como uma jovem de porte altivo e nobre, coroada de louros e ornada de grinaldas, sentada e meditando. Polímnia era a Musa da Retórica e, por conseguinte, também identificada com a eloquência. Coroada de flores, pérolas e pedras preciosas, drapeada de um imaculado peplo branco, segura de uma mão um pergaminho onde se pode ler a palavra latina suadere (persuadir). Calíope e Polímnia eram frequentemente invocadas pelos poetas, pelos aedos e por todos aqueles que fizessem uso da palavra para cantar, declamar ou simplesmente expressar opiniões.
Os primeiros dias de 2019 foram férteis em polémicas na sociedade portuguesa. O célebre programa da manhã da TVi, “Você na TV”, convidou Mário Machado, cidadão português condenado a 12 anos de prisão pela justiça portuguesa por roubo, sequestro, coação, posse ilegal de armas, ofensa à integridade física qualificada, difamação, racismo e incitação à violência e ao ódio. Um extenso currículo para o fundador do funesto grupo neonazi Hammerskins Portugal. Hoje, Mário Machado pretende reaparecer na cena mediática liderando um movimento político, a Nova Ordem Social. É neste contexto que é recebido pelo mediático Manuel Luís Goucha (que se limitou a apresentá-lo como o autor de declarações polémicas!) para discutir a necessidade de um novo Salazar em Portugal
Surgem aqui várias ressalvas: Primeiro, qual é a intenção de um canal televisivo em convidar tal personagem para um programa da manhã, popular e de grande visibilidade, e entrevistá-lo entre o horóscopo matinal e a última canção pimba do momento? Segundo, qual a legitimidade de um programa de divertimento tratar de uma temática tão complexa e delicada como o Estado Novo? (Chegou-se ao cúmulo de fazerem um vox pop em torno da questão “Sente falta de Salazar?”). Terceiro, a quem competia o contraditório, isto é, quem se encarregava de rebater os argumentos falaciosos que podiam ser apresentados pelo convidado? Dito de outra forma, qual é competência de Manuel Luís Goucha para assumir esse papel? As respostas são simples. A liberdade de expressão deve ser assegurada sempre que os valores democráticos sejam respeitados. O fascismo não pode ser tratado como um tema qualquer, entrecortado por anúncios publicitários ou outros assuntos levianos. Mas voltemos à questão da eloquência. Era necessário alguém competente na matéria frente a Mário Machado: alguém preciso nas palavras, cirúrgico nos raciocínios, rigoroso nos elementos apresentados. Assim não foi, porque Goucha não é Ogmios, que derruba os seus adversários pela palavra. Mais parecia Cassandra, a pítia da mitologia grega a quem Apolo tinha confiscado o dom de persuadir.
Miguel Guerra
Professor de História
SIP – Liceu Internacional de Saint-Germain-en-Laye
SIP – Liceu Alexandre Dumas de Saint-Cloud
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