Entrevista de Luis de Matos
19 novembre 2024Rencontre avec « The Artivist » Mélanie Alves
25 novembre 2024Do dia 26 ao dia 29 de setembro de 2024, a escritora Isabela Figueiredo esteve em França no festival “America” para participar em conversas acerca do corpo da mulher e das tormentas do passado juntamente com outros autores.
A Cap Magellan esteve presente no festival em Vincennes e tivemos o prazer de entrevistar Isabela Figueiredo.
Cap Magellan: Boa tarde Isabela. Espero que esteja tudo bem contigo. Estamos muito felizes por te receber e poder conversar contigo.
Aproveitamos a tua vinda a Paris para falar dos teus dois livros traduzidos em francês na editora Chandeigne e Lima : A Gorda e Caderno de Memórias Coloniais.
Eras muito nova na época que relatas, quando moravas em Lourenço Marques, antiga Maputo. Passou-te pela cabeça em algum momento partilhar o teu pensamento relativamente às injustiças que vias entre os negros e as outras crianças da tua idade, do teu mundo?
Isabela Figueiredo: Sim, passou pelo meu pensamento sempre. Eu não sabia como é que se era escritora, como é que se escrevia um livro. Não fazia a menor ideia disso. No entanto, quando saí de Moçambique com 12 anos, posso jurar pela minha alma que queria escrever sobre aquela experiência. Queria escrever sobre o que tinha sido o colonialismo e também sobre o que tinha sido a descolonização. Ainda não escrevi bem sobre a descolonização e ainda vou ter que ir lá.
CM: Um dos temas que se destaca nesse livro também é a questão da pertença. Viveste em Moçambique até aos doze anos de idade e sentias-te muito provavelmente africana, mas não o eras. Quando foste a Portugal, sendo portuguesa, ainda não te sentias portuguesa. Como é que construíste a tua identidade entre Moçambique e Portugal, nessa situação em que nem tu sabias ao que pertencias, quem eras?
IF: Quando vou a Moçambique sinto-me portuguesa e em Portugal sinto-me moçambicana.Na verdade, há características do meu caráter que só podem ter raízes naquele ambiente africano, colorido, desenvolto, descontraído. Sou muito isso: aberta, descontraída, desenvolta. Não tenho um caráter português conservador, moderado, de laisser faire, laisser passer e também de esconder as misérias, de ser sensata e calada. O meu caráter é um pouco aquilo que eu fui, é o meu passado, é a minha formação. Na verdade, é a minha formação que tem muita cor, muita paixão. Depois há o outro lado português, do qual eu também gosto, que é um lado racional, sensato e organizado. Tenho as duas coisas.
CM: Temos uma imagem muito colorida, muito romantizada do colonialismo português e da violência dos colonizadores. Ainda hoje aquele passado remete a um passado de poder, de glória, de Portugal era grande. Como é que foi acolhido o teu livro em Portugal?
IF: Foi muito bem acolhido e iniciou essa discussão. Neste momento estamos numa fase um poucodiferente, porque quando escrevi o caderno, a versão era que o colonialismo português foi diferente de todos os outros: nós fomos muito bonzinhos, nós não fomos racistas, nós tratávamos muito bem os negros. Hoje em dia estamos num ponto em que também se diaboliza tudo o que aconteceu, porque nem todos os portugueses que estiveram em África foram racistas como o meu pai. Alguns apenas pactuaram com o sistema. Claro que pactuar com o sistema é mau, mas muitos povos tiveram que pactuar com sistemas com os quais não concordavam, mas tinham que pactuar.
Hoje em dia também há uma diabolização do que foi o colonialismo. Se perguntarmos aos próprios povos africanos, eles não têm essa noção de uma diabolização. Sabem que eram inferiores e tratados de forma inferior, mas conseguem encontrar lá dispositivos na presença dos portugueses em África.
CM: O teu processo de reflexão sobre o teu tratamento, a tua situação, os teus privilégios relativamente ao dos povo negro começou muito cedo. Foi algo que se foi construindo com o tempo?
IF: Percebi pouco a pouco. Quando o meu pai me levava para as obras onde ele estava, eu via o tratamento dele para com os negros e achava violento. Via a tensão que ficava entre eles quando o meu pai passava e ia para o outro lugar e eu ficava a comparar. Quando íamos na rua e algum homem nos pedia esmola e o meu pai não dava, eu ia ao colo do meu pai e lembro-me de ficar a olhar para trás, para os homens que ficavam, que tinham pedido a esmola e que ficavam para trás. Olhava para o rosto deles, para os olhos deles e eu tinha uma vergonha enorme, um pesar enorme por aqueles homens não terem nada e eu ter tudo. A minha sensibilidade de criança era ferida por esses acontecimentos.
Quando eu saí de Moçambique aos 12 anos, já tinha a lição toda recebida: já sabia o que é que me magoava e o que é que estava mal. Claro que o momento após a descolonização foi horrível e fomos vítimas de muita violência, muita perseguição e de um constante clima de morte à nossa volta, nós os portugueses. Mas, de alguma forma percebi que isso estava relacionado com o que tínhamos feito atrás.
CM: Esperaste a morte do teu pai para escrever esse livro, o que foi uma forma de respeito para ele, que é uma pessoa que de um lado amaste muito, tanto como também odiaste. Como é que conseguiste gerir essa ambivalência de sentimentos entre o amor e o ódio?
IF: Na verdade, tinha as duas coisas: ódio do meu pai e desgosto. Se calhar não um ódio, mas um grande desgosto, porque eu adorava o meu pai. Adorava conversar com o meu pai, passear com o meu pai, ir ao cinema com o meu pai, etc. Nós ríamos os dois e brincávamos os dois. Havia uma ligação muito forte entre nós, pai e filha.
No entanto, também havia um grande desgosto meu em relação ao discurso dele e à ideologia dele, mas também dele em relação a mim, porque ele queria que eu tivesse o discurso dele e eu não tinha. Muitas conversas sobre estes assuntos políticos e sociais extinguiam-se porque eu sabia que a partida iam dar problemas.
Quando o meu pai morreu, já estava muito frágil. Teve uma sequência de acidentes vasculares cerebrais que o deixaram incapaz, numa cadeira de rodas. Depois começou a ter demência. Claro que nos últimos anos de vida dele, senti muita compaixão pelo meu pai e pude ver a fragilidade daquele homem, que já não era o que foi. Mas quando morreu, tornou-se ainda mais forte, porque eu falava com o meu pai, imaginava que o meu pai estava ao meu lado e falava com ele, sozinha e senti muita falta dele. Porém, continuei a pensar na necessidade de falar sobre o colonialismo e, para falar sobre o colonialismo, eu tinha de expor o meu pai. Não havia outra hipótese.
Não escrevi este livro mais cedo, o Caderno de Memórias Coloniais, porque o meu pai estava vivo e eu não queria magoar o meu pai. Portanto, a partir do momento em que o meu pai morre, eu sou livre para o “trair”. Como eu disse há pouco, eu acho que a traição ao meu pai é sobretudo uma grande declaração de amor de uma filha a um pai. É uma filha que expõe o pai, mas expõe o pai com um objetivo, que é fazer um bem histórico maior, revelar uma coisa que nunca foi revelada em Portugal. O livro foi muito bem recebido. Claro que é um livro que tem essa ambivalência, mas a riqueza do livro também está nessa ambivalência.
CM: Voltaste para Moçambique desde aquela vez aos doze anos em que tu foste embora?
IF: Só fui a Moçambique uma única vez, durante um mês, sozinha. Aluguei uma casa no Maputo, estive lá um mês, já com 54 anos. Para mim foi um grande choque porque eu tinha na memória uma cidade na qual eu podia andar a pé sozinha e, no presente, uma mulher branca não pode andar a pé sozinha na cidade. Portanto tem que se contratar um guarda-costas e um táxi. Os brancos não andam sozinhos a pé na cidade, comecei a perceber que isso estava a causar problemas. Sou loura, sou clara, dou muito nas vistas. Foi a primeira vez que senti discriminação racial. Nunca tinha sido alvo de discriminação por ser branca. Aconteceuem Moçambique, que é a minha terra. Isso foi brutal para mim. Queria que Moçambique se tivesse transformado num país independente, onde as pessoas deixassem de ser pobres, mas isso continua lá. Ccontinuo a ter crianças a pedirem dinheiro. Na verdade, o colonialismo continua lá de outra maneira. Sofri lá por causa desta frustração de não encontrar um país novo, de não encontrar um país melhor., de encontrar muito colonialismo e muito passado, sendo que eu esperava outra coisa completamente diferente.
CM: Quarenta e dois anos depois, voltaste à casa onde tinhas morado?
IF: A uma das casas, sim, a casa da Matola. Estava perfeita. Vivem lá pessoas que a mantêm muito bem, muito cuidada. Depois, a casa de Lourenço Marques, não coragem sequer de entrar no prédio. O prédio tinha uma entrada escura, miserável, com gente a dormir à porta. Tudo muito horrível, muito sujo. Eu não tive coragem de entrar.
Houve muitos momentos em que eu tive medo e isso, claro, deixou-me triste.
CM: Em A Gorda, fazes uma ligação entre duas formas de arte, a música e a literatura. Porque transmitir emoções com as duas?
IF: A música transmite muita emoção. Posso dizer que a emoção daquelas músicas influenciou o meu sentimento no momento em que estava a escrever. Há uma da qual eu gosto pessoalmente, muito particularmente, e acho que é muito o espírito do livro: I Put A Spell On You, de Nina Simone.
Quando estava a escrever o Caderno de Memórias Coloniais, tinha o rádio ligado e comecei a perceber que a música que eu ouvia influenciava a minha forma de escrever. Eu escrevia mais rápido, mais lentamente, com menos raiva, com mais raiva, conforme aquilo que estava a ouvir. Isso ficou na minha memória e comecei a sempre escrever com a música e a escolher as músicas que eu achava que tinham a energia que precisava ter.
CM: O corpo é um tema central na Gorda. Escrever sobre o corpo, sobretudo o corpo feminino, a sexualidade, pode ser complexo, sobretudo em Portugal. Como é que se trata de um assunto tão importante e ao mesmo tempo tão tabu?
IF: Sou alma, mas também sou corpo. O meu corpo é um corpo sensível: tem frio, tem calor, sente prazer, sente dor, etc. A nossa relação com o nosso corpo é muito importante para aquilo que nós somos. Aquilo que nós somos depende da relação com o nosso corpo.
Os portugueses têm muito preconceito sobre mostrar o corpo, mostrar partes do corpo. Não estou a falar das partes sexuais, estou a falar mesmo de braços, pernas, etc. Há um certo pudor da sociedade portuguesa. Pudor esse, que nunca tive. Vindo de África, sempre me senti como uma rapariga africana, que é no degrau e de pernas abertas. Algo que em Portugal ainda não se faz.
A escrita do corpo é uma escrita nossa, é a escrita da nossa sensibilidade. Nós temos uma sensibilidade espiritual, mas temos uma sensibilidade corporal também. Ela influencia o corpo. Portanto, para mim escrever sobre o corpo é uma coisa absolutamente natural. É como escrever sobre sentimentos íntimos.
CM: Numa carta entre o David e a Maria Luísa, há uma expressão que me chamou a atenção: “o amor é uma nódoa burra”? Achas que o corpo pode literalmente sofrer por amor?
IF: Para o meu caso particular, o amor é uma marca permanente. O amor pelos amigos que eu tive no passado, pelos meus pais. É uma marca permanente, mas é uma marca boa. A minha relação com o amor foi muito azarada. Eu tive muito azar com o amor. Nunca encontrei realmente uma pessoa que se orgulhasse de mim. Essa marca de não ter quem se orgulhasse de mim, de não ter sido realmente amada, é uma marca burra permanente. Impossível de apagar.
CM: Já publicaste duas obras em francês com a editora Chandeigne e Lima. Como é que conheceste a editora? Porquê continuar a publicar com a Chandeigne e Lima?
IF: A Chandeigne e Lima é uma excelente editora. Uma editora muito competente, muito profissional, que se interessa pelos seus autores e que os acarinha. Portanto, é uma editora na qual eu gosto de estar. Não fui eu que conheci a Chandeigne e Lima, foram eles que me contactaram e foi a partir daí que a nossa relação começou. Mas estou satisfeita com ela, não tenho planos para mudar.
CM: Entre as tuas referências literárias, qual é o livro que gostavas de ter escrito?
IF: Gostaria de ter escrito tudo o que a Annie Ernaux escreveu. Gosto sobretudo de escrita de mulheres. Acho que os homens são mais fechados, têm menos capacidade de exprimir emoções. São mais agressivos, mais violentos.
Também gostava de ter escrito tudo o que o Fernando Pessoa escreveu.
Esta entrevista com Isabela Figueiredo permitiu-nos perceber melhor a reflexão por trás da escrita, assim como a própria história da autora. Gostávamos de agradecer calorosamente a autora pelo seu tempo e a sua simpatia.
Para aprofundar os temas apresentados na entrevista, siga a Isabela Figueiredo nas redes sociais:
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Descubra também outros autores lusófonos talentosos no site da Chandeigne: https://editionschandeigne.fr/notre-maison/
Entrevista realizada pela Laura Padrão
e pela Sophie Marques, da Tempestade 2.1