Música Portuguesa estará em destaque no dia 16 de outubro no Festival MaMa em Paris!
1 octobre 201920 ans après Amália Rodrigues
7 octobre 2019Quando Eugénio, um jovem órfão cabo-verdiano que carrega consigo um segredo de família, troca a sua terra natal por Lisboa, fá-lo com objetivo de aprender aquilo a que chama o “Conhecimento Universal”.
Logo na noite da sua chegada, porém, Chico, o padre também cabo-verdiano que o acompanhou na viagem, corta-lhe esse sonho pela raiz, colocando Eugénio, por assim dizer, no seu devido lugar, o mesmo que Chico achou por bem aceitar e que durante séculos pôs o negro numa posição de submissão em relação à supremacia da cultura e da religião europeias. Eugénio, homem instruído, não aceita esse ancestral papel de subordinação e tenta impor-se num Portugal pós-revolucionário, mas ainda carregando em si (como ainda hoje) os tiques de quinhentos anos de colonialismo e imperialismo racistas.
Recorrendo a uma estrutura original – cada capítulo decorre num espaço diferente –, “O Canto da Moreia”, publicado pela Coolbooks, uma chancela da Porto Editora, vai retratando os progressos e os retrocessos da vida de Eugénio. De líder sindical numa fábrica de parafusos, homem bem casado com uma branca e pai de filhos, ele, frustrado com os obstáculos intransponíveis que lhe vão aparecendo pela frente, vai caindo numa espiral decadente que o levará ao alcoolismo e à vida de sem-abrigo. No Portugal profundamente desigual dos anos 70 e 80, onde nem os salários indignos conseguiam arrancar à pobreza as classes populares (haverá algo mais injusto do que a pobreza de quem trabalha?), Eugénio não consegue dar à família a vida com que sempre sonhou. À sua condição de pobre soma-se o facto de ser negro e desenraizado. E, como provam as ciências sociais, na Europa é muito mais difícil ser um pobre negro do que ser um pobre branco.
Então Eugénio, também vitimado pela sua própria húbris, vê-se abandonado pela mulher e os três filhos, deixando-se cair na mais profunda das solidões. Talvez seja essa solidão a que Luísa Semedo sujeitou o seu protagonista o que mais impressiona o leitor.
Este primeiro romance de Luísa Semedo, doutorada em Filosofia pela Universidade Paris-Sorbonne, vem no seguimento dos seus dois excelentes contos “Céu de Carvão, Mar de Aço” (vencedor, em 2017, do Prémio Literário e de Ilustração Eça de Queiroz) e “O Arroz é Proibido” (selecionado, em 2018, para a terceira antologia de contos do Centro Mário Cláudio), e é uma das poucas obras literárias escritas por portugueses afrodescendentes a retratarem essa viagem física e psicológica de África para Portugal. Um filão que, espera-se, terá ainda muito para dar à literatura lusófona.
Nuno Gomes Garcia
capmag@capmagellan.org